quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A Sociedade das Ordens I - o "bisturi"

A bem de uma sociedade livre, sem peias nem constrangimentos de índole oligárquica, "A Revolução Liberal" (1820) pôs termo ao velho regime, ao absolutismo régio e, não menos importanteà Sociedade das Ordens (Ordem da Toga e Ordem da Espada),  grupos de poder oficioso com enorme influência directa sobre o poder régio, assim firmando a criação e manutenção de intoleráveis privilégios e benefícios, em detrimento da sociedade como um todo, dos cidadãos, da liberdade e da igualdade. A Nobreza (Ordem da Toga) tinha até o extraordinário privilégio de ter as suas dívidas no mesmo estatuto das "dívidas reais". 
A tudo isto puseram termo o "Pronunciamento Militar do Porto" de 24 de Agosto de 1820 e a Constituição de 1822, e nem mesmo o "arrepio" constitucional da "Carta Outorgada" de 1826 se atreveu a restituir tais benesses às extintas Ordens. 
Tendo quase todo o séc. XIX decorrido entre diatribes políticas, com guerras civis de permeio, sucessivas reformas de regime nem sempre pacíficas, alguma instabilidade política entre vários abris e setembros, com 3 instrumentos constitucionais a jogar o jogo das cadeiras e já mais para o fim do século com a agitação dos vários grupos republicanos,  nunca estiveram criadas grandes condições para que se tentassem reinstalar colégios corporativos. 
Mas no séc. XX as Ordens ressurgiram. E desta vez com um facies de colégios profissionais que procurariam sedimentar o seu poder e influência através de um curioso eixo, o do interesse público; da utilidade publica; um bem urdido pretexto para criar nas democracias um autêntico enclave oligárquico. Ignorando, pelo sua especificidade enquanto regime, o corporativismo de Salazar, do 25 de Abril para cá e à revelia de uma Constituição franca em matéria de direitos, de liberdades e de garantias, dois desses colégios (re) construíram e solidificaram um tal regime de privilégios e um tal poder que se pode dizer que estamos de regresso à Sociedade das Ordens; elas aí estão de novo,  cerceando liberdades, direitos e garantias  e condicionando a vida de uma sociedade que se afirma livre (e cuja Constituição consigna como tal), apenas com pequenas alterações plásticas e onomásticas, ontem eram a Ordem da Toga e a Ordem da Espada, hoje são a Ordem da Toga (e da Beca) e a Ordem do Bisturi.

Começando pela segunda (a do Bisturi), dos condicionamentos - ou malefícios objectivos - deste colégio, o mais drástico, antipatriótico e abjecto será, porventura, o do condicionamento das vagas dos cursos de medicina (uma descrição demasiado simplista para um problema bem mais denso e complexo) que, em três décadas, perpetrou sobre a sociedade médica, sobre a classe sócio-profissional, sobre a medicina, sobre a sociedade e ainda sobre a juventude e sobre as famílias portuguesas, aquilo que só os terrorismos violentos conseguem, a desestruturação, descaracterização e estrangeirização do corpo médico e da medicina, perdas de identidade e de identificação sociais e, incomparavelmente mais grave, uma vaga de dolorosos desmembramentos, dilacerações  e perdas familiares: dos já milhares de jovens enfermeiros/as emigrados/as desde 2006 para cá, 98 em cada 100 foram recusados em medicina por centésimas ou décimas de valor; numa escala de 0-20, por décimas ou centésimas de valor(!). Porque se continuava a não abrir vagas no curso de medicina, apesar da já preocupante falta de médicos...

Ignorando os sinais de uma alarmante desestruturação do corpo médico e da medicina, ignorando ostensivamente que por insuficiência de médicos portugueses, se começava a contratar para Hospitais e Centros de Saúde médicos de Espanha, América do Sul e até da Ucrânia; que por insuficiência de médicos, era necessário "recontratar a recibo verde" os médicos aposentados; que por insuficiência de médicos, os cidadãos portugueses, ou eram atendidos cada vez mais ou em língua estrangeira, com sofrível ou nenhuma inteligibilidade e comunicação, nivelando os cidadãos pela bitola da veterinária, ou eram atendidos pela "brigada do reumático" (sem qualquer desprimor para os médicos aposentados); ignorando ostensivamente tudo isto, as vagas nos cursos de Medicina, por pressões do colégio e a cúmplice anuência dos demais poderes continuaram baixas e restritivas, insuficientes até para repor (apenas mantendo) o contingente médico!

Com as vagas para os cursos de medicina abaixo da metade não só das necessidades como das expectativas de admissão dos estudantes, as médias de entrada foram subindo até ao paroxismo do absurdo; este verdadeiro terrorismo social que, a despeito dos sinais de alarme quer no excesso de castelhano e ucraniano que troava nos altifalantes das salas de espera  de hospitais e centros de saúde do país, quer no retorno arrastado dos médicos jubilados, persistia em manter baixíssimo o número de vagas nas universidades, em 2002/2003/2004 elevava a média de entrada até aos 18 valores e desdobrava as contagens de desempate até aos quatro dígitos; barrava-se a entrada em medicina a um estudante porque apenas conseguiu...1763 de nota (17,63) e a média exigida na Universidade Nova, por exemplo, era de 1783(17,83) e no final desta década já só se deixa entrar em Medicina numa universidade portuguesa quem tiver média de 20... mais umas décimas ou centésimas para o desempate.
É a secularização de um paradigma verdadeiramente eugénico imposto por médicos que entraram na universidade nos anos 60 e 70 com médias de 10 e 11 valores e que chegaram aos gabinetes médicos após sucessivas passagens administrativas, sobretudo nos anos imediatos ao 25 de Abrilcomo. São estes mesmos qie através da O.M vêm determinando algo como  Só aceitamos médicos/as formados em Portugal com vintes. Abaixo disso, importamos dozestrezes e catorzes, de Espanha, Ucrânia, Equador, Bolívia ou Santo Domingo, a falar estrangeiro porque serve muito bem,  afinal, bovinos e caninos também não descrevem sintomas ao seu médico. E aos nossos dezoitos, dezassetes e dezasseis, diplomámo-los em enfermagem e deportámo-los. 
Diz-se que a forma como cada um de nós trata os demais revela ou como se vê ou que sente por próprio. Neste caso revelaria bem mais do que isso, revelaria um extraordinário complexo de inferioridade e um incontornável sentimento de mediocridade.

E prosseguindo este verdadeiro crime de lesa-pátria pelo qual deveriam ser julgados não só os bastonários e conselheiros deste colégio, mas também legisladores, políticos e até reitores de universidade, assim se concretizou esta estranha política de eugenia de classe, oficializando e protocolando, por um ladoa importação de médicos/as estrangeiros/as (e que importa se entrados nas universidades com médias de 12, ou um pouco mais, ou um pouco menos!) e por outro lado, preparando o que se viria a revelar um perverso plano de deportação da juventude portuguesaAo contrário dos pais de alguns estudantes com médias de 14, 13 ou até inferiores que tiveram meios económicos para pôr os filhos a estudar medicina em Santiago de Compostela, Salamanca ou Barcelona, na Europa (mais) Central ou até na América Latina, as famílias dos recusados por duas décimas não tinham/não têm condições económicas para tal luxo. Aos Estado e seus pares de utilidade pública (!) cabia prevenir e corrigir para o futuro, assegurando um contingente médico suficiente e de qualidade e mantendo os portugueses, portugueses e em Portugal! Ao Estado, e à luz da Constituição, cabia ainda assegurar a famigerada igualdade de oportunidades. Contudo,  aos 98 em cada 100 dos milhares de enfermeiros/as hoje expatriados que no secundário escolheram a via "cientifico-natural" para seguir saúde, condenados a estudar cá porque para mais não davam as posses, o que foi dito é que havia uma incompatibilidade insanável entre portugalidade, medicina e médias de 17,5 valores e não lhes foi dado senão um remedeio, um do mal o menos: Fazer enfermagem (e quem diz enfermagem diz radiologia, fisioterapia, etc.). E para concluírem mais tarde e da pior forma que afinal enfermagem (e similaressó fora do país, longe daqui, longe da portugalidade, longe de casa e da família; podiam ser enfermeiros se aceitassem o expatriamento. Primeiro para a vizinha Espanha, depois para França, Suiça, países nórdicos e Reino Unido e por fim até já para os EUA, Canadá e Austrália. 

Um holocausto brando, ao jeito dos costumes ditos portugueses também eles brandos, uma massiva desportugalização e desnacionalização da juventude portuguesa, uma insana e insensível dilaceração e amputação das famílias, algumas já com dois filhos jovens embarcados. Mas uma oportunidade clínica a gosto deste colégio eugénico, a de colar a vinheta na solícita prescrição de um recurso anestésico (ou prótese afectiva e familiar!) algo como substituam o(s) filho(s) que Vos deitamos fora perfilhando  um/a desses/as médicos estrangeiros que fizemos cá chegar; um ao almoço, outro ao jantar...


(continua em A Sociedade das Ordens II - o "toga")